Celulares, cidadania digital e a sabedoria dos gregos

27/12/2024

Por Guilherme Melo e Ronai Rocha | Gerente de Educação do Instituto Sivis e Doutor em Filosofia 

Reproduzido da Estadão

Aristóteles tem muito a ensinar aos cidadãos digitais do século 21, quando aborda a virtude da temperança, que nos permite equilibrar as necessidades e desejos para viver de forma harmoniosa

Muito se tem discutido sobre a polêmica questão da proibição dos celulares nas escolas. É comum que os debates girem em torno de temas como os prejuízos em relação ao desempenho acadêmico, os riscos de problemas de saúde física e mental, o não desenvolvimento de habilidades básicas de convivência, entre outros.

Como professores, diante da evolução dos acontecimentos e de estudos recentes, tendemos a ser favoráveis à proibição dos celulares nas escolas. Sim, compreendemos que há muitos matizes nos debates – por exemplo, que os jovens precisam aprender a usufruir do universo de possibilidades proporcionado pela internet e não simplesmente serem proibidos de usá-la; talvez o celular poderia não ser banido, mas sim as redes sociais, etc. –, mas, pensando nas interações de aprendizagem na escola, enxergamos que é melhor que os alunos não tenham à mão um celular.

Porém, neste texto, a ideia não é nos alongarmos especificamente no assunto dos celulares. Citamos tal polêmica porque ela é um bom gancho para refletirmos sobre uma noção cada vez mais utilizada na educação e na sociedade atual: a cidadania digital.

Quando ouvimos discussões recentes sobre cidadania digital, percebemos a ênfase em assuntos como o direito equitativo de acesso à tecnologia, leis sobre o mundo virtual, combate a notícias falsas, segurança no ciberespaço, etiqueta digital e assim por diante.

Reconhecemos que são discussões pertinentes e necessárias diante do cenário contemporâneo. Porém gostaríamos de explorar aqui uma perspectiva pouco abordada em tais reflexões, visando a oferecer insights da sabedoria dos gregos que acreditamos que podem contribuir para a formação de cidadãos digitais: a ética das virtudes.

Afinal, podemos mudar as leis, erigir inovações institucionais, arquitetar sistemas antifraude, estabelecer códigos de conduta, promover campanhas de saúde, etc. e, no limite, não abordar a questão central: estamos falando sobre a formação e o desenvolvimento de seres humanos. E, no caso, não apenas de crianças e adolescentes; há diversos desafios também entre os adultos, como vícios em “apostas do tigrinho”, consumo de materiais que envolvem pedofilia, Fomo (fear of missing out, o medo de perder algo), e assim vai.

Nesse sentido, parece-nos insuficiente utilizarmos chavões como “é um problema de saúde pública”, “faltam leis adequadas”, etc., e acreditarmos que os caminhos mais consistentes virão simplesmente de novos aparatos legais ou tecnocráticos. No limite, trata-se de uma questão humana, demasiado humana: a dificuldade em termos medida e razoabilidade na nossa relação com nós mesmos, com os outros e com os objetos materiais. Nesse sentido, a formação visando à promoção de virtudes extrapola os limites escolares e deve alcançar outras esferas da sociedade, afinal, a educação para a ética não precisa se restringir à escola, mas deve ser compreendida como um compromisso coletivo.

E é aqui que o grego Aristóteles, um sábio “das antigas”, tem muito a ensinar aos cidadãos digitais do século 21, quando aborda a virtude da temperança, que é aquela que nos permite equilibrar as necessidades e desejos, de modo a viver de forma harmoniosa. Em outras palavras, ela insere racionalidade nos nossos apetites sensíveis, tornando-nos mais humanos e, assim, mais livres.

Certamente, proibir que os jovens tenham acesso aos celulares contribui para que não se dispersem durante as aulas. Porém, para além da proibição, qual o valor educacional e humano que pretendemos proteger e cultivar com isso? Entre outros, o autodomínio: desejamos que eles sejam capazes de se concentrar para realizarem um estudo aprofundado, capazes de terem foco, de atuarem intencionalmente, com sentido, ou seja, que não se tornem reféns dos múltiplos estímulos do mundo contemporâneo, não se transformando em fantoches da publicidade, da ansiedade crônica, do ativismo e do imediatismo exacerbados. Em suma, desejamos que eles sejam livres e capazes de criar e empreender ações ousadas e propositivas a favor de si e do bem comum.

Por isso, ao falarmos sobre temperança, estamos tocando num ponto que transcende o universo do celular e da tecnologia. Num mundo onde tudo parece convidar ao excesso – do consumo desenfreado à exposição constante nas redes sociais –, a temperança surge como uma atitude existencial fundamental.

No fundo, o mundo digital é mais um âmbito da vida humana, no qual podemos crescer, florescer ou, ao contrário, nos denegrir, nos escravizar. E, por isso, também cabe falar em virtudes para a vida digital. Ou seja, a discussão não é apenas sobre leis, aplicativos de controle, códigos de ética; é sobre formar pessoas de modo profundo e consistente, algo que os gregos têm muito a nos ensinar.

Se promovermos iniciativas que favoreçam o desenvolvimento de virtudes – no caso que comentamos, a temperança –, certamente contribuiremos para que haja melhores cidadãos, que são capazes de utilizar as tecnologias de modo equilibrado para viver bem consigo mesmos e com os outros. E, com cidadãos (digitais) mais virtuosos, quem ganha é a democracia.

 

Leia mais em Estadão

 

 

 

Utilizamos cookies para proporcionar a melhor experiência possível no nosso site.
Aceitar
Rejeitar
Privacy Policy