Criticar medidas públicas nunca deve ser crime

05/02/2025

Por Jamil Assis | Diretor de Relações Instituicionais do Instituto Sivis

Reproduzido do Estadão

Algumas semanas atrás, o deputado federal Nikolas Ferreira publicou um vídeo criticando as novas normas da Receita Federal para o monitoramento de transações via Pix, sugerindo que tais medidas poderiam levar à taxação do sistema no futuro. Apesar de ele afirmar explicitamente que o Pix não seria taxado, a narrativa do vídeo insinuava um possível controle fiscal mais rigoroso que poderia afetar trabalhadores informais. A polêmica escalou quando o governo reagiu, revogando a norma em questão.

A repercussão desse caso evidenciou os desafios de definir o que é desinformação em contextos de debates políticos. Enquanto uns viram uma forma legítima de oposição, alguns veículos de mídia o acusaram taxativamente de disseminar fake news. O PSOL entrou com ação o acusando de crime contra a economia popular. Jornalistas renomados afirmaram categoricamente que questionar medidas públicas seria crime.

Questionar medidas públicas do governo não é crime, tampouco desinformação. Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição assegura a liberdade de expressão e, por conseguinte, o direito de criticar abertamente as ações do governo. Até mesmo o termo “atacar” — quando entendido como contestar, discordar, apontar falhas ou até mesmo ridicularizar — está amparado por dispositivos constitucionais que protegem a manifestação do pensamento, desde que não se confunda com incitação à violência, calúnia ou difamação.

Claro que há boatos, fakes e gente que acredita que a Terra é plana — mas não dá para chamar tudo de “desinformação” e encerrar o papo. Rotular qualquer crítica como crime é como pôr uma mordaça na sociedade. Em uma democracia liberal consolidada, liberdade de expressão e crítica ao governo não são concessões, mas elementos essenciais do jogo. Historicamente, muitos avanços vieram justamente da capacidade de questionar o status quo.

É importante lembrar que democracias não são feitas para serem ambientes confortáveis. Democracias, como ensinou Norberto Bobbio, são regimes de conflito administrado. O debate público – ainda que ruidoso, polarizado ou repleto de absurdos – é a argamassa que sustenta as liberdades. Não há liberdade sem a possibilidade de erro, exagero ou, mesmo, insanidade. O que nos cabe, enquanto sociedade, não é podar a crítica, mas fortalecer os instrumentos que nos permitem separar o que é opinião legítima daquilo que ultrapassa os limites da legalidade.

E o que é desinformação? O que é uma crítica legítima? Até onde vai o poder do Estado para arbitrar isso? São perguntas que nos levam de volta a Stuart Mill, para quem a liberdade de expressão é o melhor antídoto contra os erros. Não porque o erro seja aceitável, mas porque o confronto entre ideias nos aproxima, ainda que imperfeitamente, da verdade.

Aqui reside o ponto central: em um Estado Democrático de Direito não é crime questionar medidas públicas. Não é crime contestar o governo. Não é crime apontar falhas, debater narrativas ou, até mesmo, levantar hipóteses absurdas. Crime, em uma sociedade de Direito, é agir contra a lei – e o Código Penal já nos dá instrumentos suficientes para lidar com fake news que cruzem a linha da calúnia, injúria ou incitação à violência. O resto é debate público, com todo o seu caos inerente.

Se formos revisitar o passado, quantas melhorias – da luta abolicionista às Diretas Já – não foram impulsionadas pela coragem de jornalistas, intelectuais, cidadãos comuns ou parlamentares que ousaram discordar frontalmente do governo do dia?

Claro que tudo pode ficar mais complicado. Os limites da liberdade de expressão são constantemente testados, especialmente quando o debate toca em temas sensíveis. Questões como o uso de banheiros públicos por pessoas trans, a segurança das urnas eletrônicas e a eficácia das vacinas são bons exemplos. Para alguns, essas discussões são legítimas e necessárias. Para outros, pode colocar vidas em risco. Onde termina o direito ao debate e começa o perigo da desinformação? Até que ponto a liberdade de expressão pode justificar a propagação de teses já refutadas pela ciência, preconceituosas ou que coloquem em risco a democracia?

Para esses casos difíceis, é fundamental ter clareza: a liberdade de questionar e debater não equivale a validar todas as opiniões ou aceitar argumentos sem nenhuma base, científica ou de outra natureza, sem contestação. A moderação de conteúdo não se limita à remoção de postagens, mas pode incluir mecanismos de fricção, como a sinalização de desinformação ou a contextualização do conteúdo, preservando ao mesmo tempo a liberdade de expressão.

A ideia de que criticar medidas públicas pode ser considerada crime carrega a naturalização do paternalismo estatal como salvaguarda da sociedade e a subserviência da liberdade de expressão ao governo do dia e à ortodoxia. Essa ideia não apenas fere o espírito do liberalismo político, mas empurra o debate para um terreno em que a discordância vira ameaça. E a crítica, subversão.

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