26/02/2025
Por Guilherme Melo | Gerente de Educação do Instituto Sivis
Reproduzido do jornal O São Paulo
Ao inundarem a vida dos jovens, as telas de celulares e computadores representam um desafio para o seu desenvolvimento que vai muito além dos aspectos meramente tecnológicos. No fundo, é a eterna questão do cultivo das virtudes que se apresenta a nós, agora nessa nova roupagem.
No livro Vita contemplativa ou sobre a inatividade (Petrópolis: Vozes, 2023), o filósofo Byung-Chul Han faz uma reflexão bastante contundente: “A coação crescente à produção e à comunicação dificulta o demorar contemplativo. A religião pressupõe uma forma especial de atenção. Malebranche caracteriza a atenção como a prece natural da alma. Hoje, a alma não mais faz preces. Sua hiperatividade pode ser responsabilizada pela perda da experiência religiosa. A crise da religião é uma crise da atenção”.
Mas o que nos levou a essa crise da atenção? Certamente, os dispositivos móveis desempenham um papel significativo nesse fenômeno. O avanço da tecnologia trouxe benefícios inegáveis, mas também desafios profundos, especialmente no que diz respeito à capacidade de concentração, ao tempo de qualidade e ao cultivo da vida interior. Nesse sentido, a discussão sobre a proibição do uso de celulares nas escolas se apresenta como uma excelente oportunidade para um debate mais amplo e profundo sobre esse tema.
Quando se fala em “bem-estar digital”, as discussões costumam girar em torno de temas como acesso equitativo à tecnologia, combate à desinformação, segurança cibernética etc. Esses são, sem dúvida, aspectos relevantes. No entanto, há uma dimensão igualmente fundamental e muitas vezes negligenciada: a formação ética e moral dos indivíduos para o uso responsável da tecnologia.
Podemos estabelecer novas leis, criar normas mais rígidas e desenvolver ferramentas de controle. Ainda assim, tudo isso pode ser insuficiente se não abordarmos a questão central: estamos lidando com a educação de seres humanos. Por isso, limitar a discussão ao discurso de que “faltam regulamentações” ou que “é um problema de saúde pública” pode ser uma abordagem simplista. Esse é um tema que vai além de políticas públicas e soluções tecnocráticas; trata-se de uma questão essencialmente humana: a dificuldade em estabelecer limites, em encontrar equilíbrio e em desenvolver uma relação saudável com o mundo e consigo mesmo.
Aqui, a filosofia aristotélica nos oferece uma chave de leitura extremamente relevante. Aristóteles descreve a temperança como a virtude que permite regular nossos desejos e impulsos para alcançar uma vida harmoniosa. Em outras palavras, a temperança introduz racionalidade na forma como lidamos com os prazeres e as distrações, ajudando-nos a desenvolver autodisciplina, autoconhecimento e liberdade interior.
A proibição do uso de celulares em sala de aula pode ajudar a reduzir distrações, mas essa medida, por si só, não resolve a raiz do problema. O que realmente queremos ensinar aos jovens com essa decisão? O objetivo não deve ser apenas impedir a dispersão, mas sim promover uma cultura de atenção, reflexão e autocontrole. Queremos que os estudantes aprendam a valorizar a concentração, a disciplina e a capacidade de direcionar sua energia para atividades significativas. O risco do mundo digital não é apenas o tempo perdido com distrações, mas a transformação das pessoas em reféns de estímulos incessantes, de ciclos de compulsão e da busca constante por gratificação imediata.
Assim, a reflexão sobre a temperança e outras virtudes não se restringe ao debate sobre tecnologia. Vivemos em uma era que incentiva os excessos – seja no consumo, seja na necessidade de exposição constante ou na busca incessante por validação externa. Em meio a esse cenário, a temperança se torna uma virtude essencial para aqueles que desejam viver de forma mais equilibrada, com mais presença, maior clareza de pensamento e uma vida interior mais profunda.
O universo digital é apenas mais uma das dimensões da existência humana. Ele pode ser um espaço de crescimento e aprendizado ou, ao contrário, um local de aprisionamento e alienação. Portanto, a questão não deve ser reduzida a regras e restrições, mas deve envolver a formação integral das pessoas. Esse é um processo que exige consistência, maturidade e um compromisso profundo com a educação para a liberdade e a responsabilidade.
Se queremos preparar as novas gerações para um uso mais consciente e saudável das tecnologias, precisamos investir na formação de virtudes, como a temperança. Essa abordagem não apenas contribuirá para um desenvolvimento mais equilibrado, mas também fortalecerá a saúde emocional, a inteligência social e a capacidade de atenção dos indivíduos. Dessa forma, a tecnologia poderá ser utilizada de maneira mais sábia, permitindo que cada um desenvolva uma vida mais significativa, reflexiva e orientada para o bem comum.
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