12/03/2025
Por Jacob Mchangama e Jeff Kosseff
Traduzido por Fernanda Trompczynski | Estagiária de pesquisa no Instituto Sivis
Acreditamos que o Brasil enfrenta, atualmente, uma crise de liberdade de expressão. Através de decisões judiciais baseadas em termos legais vagos como “notícias falsas” ou “ameaças”, opiniões dissidentes, contudo, legítimas, têm sido taxadas e censuradas. Exemplo disso é o que ficou conhecido como ‘inquérito das fake news’, aberto em 2019 e estendido indeterminadamente, tanto no sentido temporal quanto de seu escopo. A restrição de discurso apresenta graves riscos à democracia pois, ao contrário do que dita o senso comum, são as minorias quem são mais gravemente prejudicadas pela censura.
Pensando nisso, o Instituto Sivis criou, em 2024, o Centro Voxius para a liberdade de expressão, ao entender a importância da promoção deste importante valor nas democracias contemporâneas. Através do Centro, temos trabalhado para inserir a liberdade de expressão no debate público através, sobretudo, da produção de conhecimento, dando ênfase às questões de regulamentação das redes sociais e monitorando abusos de poder relacionados à restrição de discursos.
O texto abaixo, de autoria do professor, autor e fundador da organização The Future of Free Speech, Jacob Mchangama, e do professor e jornalista Jeff Kosseff, foi traduzido e adaptado pelo Centro Voxius, visando jogar luz, novamente, sobre os casos de supressão de discurso que vêm ocorrendo no Brasil:
Em 2019, Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal, apontou o ministro Alexandre de Moraes para liderar um inquérito para investigar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas e ameaças contra a Corte, seus ministros e familiares”. Moraes logo expandiu dramaticamente o escopo de seus poderes para incluir “fake news” e propagandas voltadas para as instituições democráticas de maneira geral, com consequências abrangentes para o discurso político no Brasil. Em 2022, quando apontado presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Moraes recebeu uma autoridade ainda maior para monitorar discursos políticos durante as eleições para prevenir “a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”. Os métodos controversos de Moraes dividiram a opinião pública brasileira – alguns o veem como um defensor da democracia, enquanto outros como o Grande Inquisidor da censura na esfera pública brasileira.
Moraes mais recentemente ganhou espaço nas manchetes com a sua suspensão da plataforma conservadora Rumble por supostamente permitir a disseminação de informações falsas. Nós não temos qualificação para comentar sobre a aplicação da legislação brasileira por Moraes, mas é válido pontuar que sua decisão faz grandes esforços para defender a proibição geral contra o Rumble com base nos princípios da filosofia liberal e de padrões legais estrangeiros, incluindo a jurisprudência da Primeira Emenda da Constituição Americana. Ao fazer isso, entretanto, Moraes conseguiu desfigurar John Stuart Mill e deturpar a lei de liberdade de expressão dos EUA.
O caso se originou a partir da reativação, em fevereiro, do perfil do Rumble de Allan Lopes dos Santos, um apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro e alvo de investigações policiais por uma série de supostos crimes de expressão, incluindo a disseminação de informações falsas. Moraes justificou a sua suspensão do Rumble apontando para a “massiva divulgação de desinformação e com a possibilidade da nociva e ilícita utilização da tecnologia e inteligência artificial” que ocorrem na plataforma, “colocando em risco a democracia”.
O CEO do Rumble, Chris Pavlovski, rejeitou o que ele chamou de uma “ordem ilegal” de Moraes num post no X, algo que Moraes abordou diretamente em sua decisão:
“Chris Pavlovski confunde liberdade de expressão com uma inexistente liberdade de agressão, confunde deliberadamente censura com proibição constitucional ao discurso de ódio e de incitação a atos antidemocráticos, ignorando os ensinamentos de um dos maiores liberais em defesa da liberdade de expressão da história, John Stuart Mill”
De fato, Moraes parece ter argumentado que a supressão de discurso ajuda a cultivar valores democráticos: “Observe-se que, não se trata de novidade a instrumentalização das redes sociais, inclusive da RUMBLE INC., para divulgação de diversos discursos de ódio, atentados à Democracia e incitação ao desrespeito ao Poder Judiciário nacional”. Seu uso da lei americana para apoiar sua decisão é particularmente indevida, já que a Primeira Emenda não possui exceções para o discurso de ódio, ataques à democracia, ou desrespeito aos juízes.
Ainda que os tribunais brasileiros não estejam vinculados à Primeira Emenda, Moraes usou propositalmente a doutrina desta para apoiar sua decisão. A lei moderna da Primeira Emenda se baseia no referencial teórico do mercado de ideias, que normalmente defende que permitir a competição de discursos num mercado aberto é muito melhor do que a regulamentação governamental. O referencial do mercado de ideias pode ser atrelado ao livro Sobre a Liberdade, do filósofo John Stuart Mill, do qual as ideias inspiraram divergências e concordâncias escritas pelos juízes da Suprema Corte dos EUA Oliver Wendell Holmes e Louis Brandeis, há cerca de um século.
Ainda que Mill, Holmes e Brandeis sejam conhecidos por sua oposição às restrições ao discurso, Moraes ainda assim utilizou seus trabalhos para apoiar a intervenção governamental. “O filósofo inglês JOHN STUART MILL, em sua obra A liberdade, de 1859, e precursor da teoria do livre mercado de ideias, desenvolvida posteriormente pelos Justices HOLMES e BRANDEIS na Suprema Corte norte-americana, advertiu contra a limitação à circulação de ideias em qualquer sociedade, ressaltando, entretanto, a partir de uma visão utilitarista, a possibilidade excepcional de restrição a esse direito, nas hipóteses que acarretassem um dano injusto”, Moraes escreveu.
Moraes se apoiou numa tradução de Mill para criar essa interpretação “amigável ao governo” de seus escritos. O que Mill escreveu na parte que Moraes citou foi “liberdade para se unir por algum propósito não envolvendo dano aos outros: as pessoas assim combinadas, supõem-se, atingiram a maioridade e não foram forçadas ou enganadas”. Moraes interpreta o mercado de ideias do Mill como um tipo de teste de equilíbrio, em que o governo pode facilmente justificar a regulação de discursos danosos. Entretanto, o que Mill realmente escreveu sobre o discurso (e Moraes não citou) rejeita esse conceito: Na seção de abertura do Capítulo II, “Sobre a Liberdade de Pensamento e Discussão”, Mill afirma que:
“O mal particular em silenciar a expressão de uma opinião é que constitui um roubo à humanidade; à posteridade, bem como à geração atual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a sustentam. Se a opinião for correta, ficarão privados da oportunidade de trocar erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade, produzida pela sua confrontação com o erro — o que constitui um benefício quase igualmente grande”.
Mill prossegue dizendo que:
“Quem deseja suprimi-la nega, obviamente, a sua verdade; mas não é infalível. Não tem autoridade para resolver a questão por toda a humanidade, e de retirar a todas as outras pessoas os meios de ajuizar. Impedir que uma opinião seja ouvida porque têm a certeza de que é falsa é estar a partir do princípio de que a sua certeza é a mesma coisa que certeza absoluta. Todo o silenciar de uma discussão constitui uma pressuposição de infalibilidade.”
Na verdade, Mill celebremente chega a argumentar que “Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade”.
É difícil ler estas citações como apoio de uma decisão judicial para suspender uma plataforma de mídia social por completo em virtude de preocupações com informações falsas.
Moraes também utiliza duas frases da opinião de Holmes, em 1919, no caso Schenck contra Estados Unidos, que determinou a prisão de um homem que distribuiu brochuras que criticavam o recrutamento militar: “A questão em todos os casos é se as palavras são usadas em tais circunstâncias e são de tal natureza a causar um perigo claro e presente que traga a tona os perigos substantivos que o Congresso tem direito de prevenir. É uma questão de grau e proximidade”. Schenk é famoso não apenas por articular o teste de “perigo claro e presente” da Primeira Emenda, mas também pela muito usada citação pela metade que “a proteção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem de falsamente gritar fogo em um teatro e causar pânico”. A metáfora do “fogo em um teatro lotado” se tornou uma justificativa usada quando uma autoridade quer banir discursos protegidos pela Primeira Emenda.
O que o Moraes deixou de mencionar foi que no final de 1919, num dissenso em Abrahms contra Estados Unidos, Holmes repudiou a argumentação de Schenck ao articular o referencial teórico moderno do mercado de ideias: “o melhor teste da verdade é o poder de um pensamento ser aceito na competição do mercado, e que a verdade é a única base sob a qual seus desejos podem ser realizados em segurança”. Ele também deixou de mencionar que em uma opinião de 1969, em Brandenburg contra Ohio, a Suprema Corte mudou substancialmente o teste de “perigo claro e presente”, substituindo-o por uma exceção mais limitada à incitação iminente de atos ilícitos.
Ainda que Moraes pareça pensar diferente, sob a Primeira Emenda, o discurso é presumivelmente protegido de regulações governamentais a menos que caia na categoria limitada de discurso não-protegido. Como o Chief Justice John Roberts escreveu em 2010, os Estados Unidos não possuem um “teste de flutuação livre para a cobertura da Primeira Emenda”, e a Primeira Emenda “não se estende apenas a categorias de discurso que sobrevivem um equilíbrio para fins de custos sociais relativos e benefícios”. Da mesma forma, a Suprema Corte rejeitou firmemente tentativas de esculpir discursos inverídicos como uma exceção à Primeira Emenda. “Nossa tradição constitucional se opõe à ideia de que nós precisamos do Ministério da Verdade de Oceânia”, a Corte escreveu.
Há anos, Moraes vem utilizando sua posição de poder para intimidar oradores e plataformas de mídia social, tudo em nome da luta contra as informações falsas. Até agora, Moraes já levou sua luta pela verdade e democracia ao ponto do Tribunal Superior Eleitoral ter ordenado o banimento de discursos políticos que eles acreditam constituir “informações gravemente descontextualizadas”. No entanto, a decisão de Moraes é um exemplo digno de livro de tal transgressão. É de se esperar que um homem como este prestaria uma atenção mais cuidadosa à verdade.
Jacob Mchangama é professor, autor e fundador da organização The Future of Free Speech. Jeff Kosseff é jornalista, advogado e professor de cibersegurança na U.S. Naval Academy.
Leia o texto adaptado no OGlobo