Sem a mediação do Judiciário, as redes se tornariam as grandes responsáveis por decidir o que pode ou não permanecer online, o que seria um risco à pluralidade de opiniões e ao debate democrático
30/09/2024
Por Sara Clem / Instituto Sivis
Reproduzido da Carta Capital
O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a decidir sobre uma questão que pode redefinir o futuro da internet no Brasil: a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Esse artigo estabelece que as plataformas digitais, como Facebook e Google, só podem ser responsabilizadas por conteúdos de seus usuários após a emissão de uma ordem judicial.
Dois recursos extraordinários estão no centro dessa questão. O primeiro, relatado pelo ministro Dias Toffoli (RE 1.037.396). O segundo, sob relatoria do ministro Luiz Fux (RE 1.057.258). O julgamento traz à tona uma discussão delicada: as plataformas devem agir apenas após uma ordem judicial ou podem ser responsabilizadas por conteúdos com base em notificações extrajudiciais? Ou mais, devem monitorar ativamente?
A princípio, a decisão do STF pode parecer simples, mas as consequências são extremamente complexas. De um lado, há os que defendem o modelo atual. Juristas como Francisco Rezek, Lenio Streck, Nelson Jobim e Ronaldo Lemos alertam em seus pareceres para os riscos de responsabilizar as plataformas sem uma ordem judicial, pois isso poderia levar à censura preventiva. Sem uma ordem judicial definindo o que é lícito ou não, as empresas buscariam evitar a responsabilização derrubando conteúdos, definindo de fato o que pode ou não ser dito na internet.
Por outro lado, há quem aponte a demora do Judiciário em atender às demandas do mundo digital. Eles argumentam que, em certas situações, a remoção de conteúdo deve ser imediata, sem intervenção judicial. O Instituto Alana e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) adotaram essa posição em casos que envolvem a proteção de crianças, anúncios fraudulentos e crimes contra a honra. Na mesma linha, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) acredita que responsabilizar mais rapidamente as plataformas é essencial para impedir a proliferação de fake news e discursos de ódio, que ameaçam a ordem pública. A agilidade na remoção de conteúdo é vista como uma ferramenta necessária para combater crimes digitais e proteger a sociedade.
O STF parece inclinado a encontrar um caminho intermediário, definindo que apenas para conteúdos “manifestamente ilícitos” seja desnecessária a decisão judicial. No entanto, alguns especialistas questionam o que significa é “manifestamente ilícito”. Em casos extremos, como exploração infantil, a resposta pode ser clara e até binária – ou é ou não é. Mas quando se trata de discursos políticos controversos, denúncias ou mesmo relações de consumo, a fronteira entre o legal e o ilícito se torna nebulosa.
O que é “manifestamente ilícito” é passível de disputa. Plataformas, com medo de represálias legais, podem remover conteúdos que deveriam estar protegidos pela liberdade de expressão. Isso pode afetar os usuários de todos os espectros ideológicos. Um exemplo que pode ser utilizado é a discussão sobre o incentivo à ocupação de terras improdutivas, frequentemente defendido por movimentos sociais. Para alguns, é uma luta legítima; para outros, incita à invasão de propriedades, o que para muitos é “manifestamente ilícito”. Quem determinará onde termina a liberdade de expressão e começa a incitação a um crime? As plataformas estariam dispostas a enfrentar uma CPI do MST?
O direito à liberdade de expressão não existe para proteger discursos hegemônicos, que já são aceitos. Ele serve, sobretudo, para proteger falas que levantam a sobrancelha de gente poderosa, como deputados e advogados na Faria Lima. Sem a mediação do Judiciário, as redes se tornariam as grandes responsáveis por decidir o que pode ou não permanecer online, o que seria um risco à pluralidade de opiniões e ao debate democrático, silenciando vozes dissidentes.
O STF precisa continuar sendo cauteloso. O monitoramento ativo e o “notice and take down” podem parecer soluções rápidas para combater crimes online, mas delegar às plataformas a responsabilidade de julgar o que é ou não ilícito pode resultar em remoções arbitrárias tomadas por advogados cautelosos, enfraquecendo o direito à liberdade de expressão e, pior, o acesso à informação. Ao fim, o artigo 19 ainda nos parece a pior forma de proteger a sociedade no momento, à exceção de todas as demais.
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