O PL 2628/22 e os direitos das crianças na internet

 

06/05/2025

Jamil Assis | Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis

Leonardo Corrêa | Fundador e presidente da Lexum

Reproduzido da Gazeta do Povo

Tem um velho ditado que diz: o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções. Às vezes, é exatamente assim que funciona no mundo das leis. Vejam o caso do PL 2628/22, aprovado no Senado e agora em análise na Câmara. A proposta nasceu de uma ideia nobre: proteger crianças e adolescentes no ambiente digital. E quem seria contra isso? Ninguém, claro. Mas como toda boa intenção convertida em norma jurídica, o diabo está nos detalhes.

O projeto obriga plataformas digitais a removerem, de imediato e sem ordem judicial, qualquer conteúdo denunciado como ofensivo aos direitos infantojuvenis. A lei é tão ampla que qualquer um, ao ver algo que “pareça” violar tais direitos, pode acionar o mecanismo de denúncia e provocar a remoção automática do conteúdo. E mais: as plataformas ainda são obrigadas a notificar as autoridades. Simples assim.

Estamos criando, por lei, um mecanismo de censura terceirizada — não pelo Estado, mas por agentes privados submetidos ao constrangimento regulatório. E o mais curioso: em nome da proteção da infância, vamos acabar silenciando os próprios adolescentes

Mas o que é exatamente uma “violação aos direitos de crianças e adolescentes”? A pergunta é decisiva. O projeto não oferece balizas claras. Agora, imagine esse dispositivo em funcionamento no mundo real, com os conflitos cotidianos das famílias brasileiras, com os embates de valores entre gerações, com o uso político da infância. Imagine um pai que não gosta de ver o filho usando um apelido na internet. Denúncia. Uma avó que considera inadequado o neto frequentar um centro religioso de matriz africana. Denúncia. Um vizinho escandalizado porque a menina do andar de baixo foi a uma passeata. Denúncia. Ou, mais sofisticadamente: uma militância organizada decide que determinado conteúdo é “ofensivo ao desenvolvimento infantil” e, com poucos cliques, remove uma aula, um depoimento, um vídeo. Não por decisão judicial, mas por medo da plataforma.

A lógica é simples: diante da ambiguidade legal, e sob risco de multas milionárias, as empresas vão preferir tirar do ar, pois é melhor prevenir do que ser processado. Estamos criando, por lei, um mecanismo de censura terceirizada — não pelo Estado, mas por agentes privados submetidos ao constrangimento regulatório. E o mais curioso: em nome da proteção da infância, vamos acabar silenciando os próprios adolescentes. O garoto que fala sobre depressão, a menina que narra um episódio de bullying ou o grupo que discute sexualidade e saúde mental. A lei não distingue o discurso abusivo da expressão legítima. E, onde não há critério claro, reina o medo.

Há um detalhe importante que raramente aparece nesse debate: adolescentes não são apenas sujeitos a proteger — são cidadãos em formação. A Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e até a própria Lei Geral de Proteção de Dados reconhecem sua autonomia progressiva. Isso significa, entre outras coisas, que têm o direito de participar da vida pública, de se expressar, de contar sua história. A ideia de protegê-los pela mordaça é uma contradição em termos.

Proteger as crianças é necessário. Claro que é. Mas proteger demais pode infantilizar, sufocar e, no limite, impedir que a juventude fale por si. Uma lei equilibrada pode — e deve — prever a remoção de conteúdos que causem dano real e imediato, desde que haja boa-fé, materialidade e espaço para o contraditório. Fora disso, o que resta é o velho impulso do paternalismo bem-intencionado: tratar a sociedade como uma massa incapaz, que precisa de tutela permanente.

Toda democracia é um exercício de equilíbrio: entre o cuidado e a liberdade, a ordem e o risco, o medo e a confiança. E talvez a principal lição aqui seja esta: regimes bem-intencionados, quando cedem ao pânico moral, tendem a sacrificar direitos individuais no altar da maioria. James Madison ensinou que nem toda vontade popular é justa — facções podem esmagar minorias sob o pretexto do bem comum. E Randy Barnett lembra que a Constituição existe para proteger a soberania do indivíduo contra os excessos do poder, ainda que democraticamente exercido. Não existe infância verdadeiramente protegida onde não há espaço para a própria voz dos jovens. Nem liberdade real se não estivermos dispostos a ouvir — mesmo que quem fale tenha só quinze anos e esteja contando o que sente

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