02/05/2025
Jamil Assis | Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis
É difícil discordar da intenção por trás do Projeto de Lei 2628/22, em tramitação na Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados. A proposta, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), visa proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais – um objetivo inquestionável. No entanto, os artigos 21 e 22 da redação aprovada no Senado, ao tentar responder a esse desafio com agilidade e rigor, abrem uma brecha perigosa para distorções que podem comprometer direitos fundamentais, inclusive dos próprios jovens.
O texto obriga plataformas digitais a retirarem conteúdos supostamente ofensivos aos direitos de crianças e adolescentes, assim que forem comunicadas, dispensando a necessidade de ordem judicial. Além disso, determina que toda notificação de violação implique, obrigatoriamente, o envio de informações às autoridades. O problema começa pela expressão genérica “violar direitos de crianças e adolescentes”, que, sem critérios objetivos, pode abarcar qualquer coisa – de vídeos de adolescentes relatando experiências com transtornos mentais a conteúdos educativos sobre sexualidade. Essa vagueza fica pior quando combinada com a obrigação de remoção imediata. Pressionadas por possíveis sanções, as plataformas tendem a remover o conteúdo por precaução, instaurando uma lógica de censura privada.
Há ainda outro ponto relevante: a possibilidade de que qualquer um possa denunciar uma suposta violação. Trata-se de um problema grave, pois é comum que usuários denunciem conteúdos apenas por discordarem de sua mensagem ou sentirem-se incomodados. As exceções previstas no Marco Civil da Internet – como os casos de nudez não consensual e de violação de direitos autorais – exigem que a denúncia parta do titular do direito, resguardando o sistema de abusos.
O resultado pode facilmente resvalar no absurdo. Um pai incomodado com o apelido carinhoso usado por amigos do filho num vídeo pode denunciá-lo como bullying. Uma avó conservadora, inconformada com a conversão religiosa do neto, pode acionar a plataforma por “aliciamento”. Um vizinho indignado ao ver um jovem com o boné de um partido que desaprova pode acusar os pais de “exploração ideológica”. Um adolescente que compartilha um depoimento sincero sobre sua saúde mental pode ser silenciado sob a alegação de “apologia ao suicídio”.
Ao criar um sistema de denúncias sem filtro material, o projeto transforma plataformas em árbitros de última instância – e os adolescentes em alvos fáceis de silenciamento, mesmo quando exercem sua liberdade de expressão. Esse tipo de política induz à censura privada e à autocensura. Desconhecidos vigiarão a vida alheia e denunciarão escolhas que só cabem aos pais e aos próprios adolescentes. Jovens que usam a internet para se expressar, buscar apoio ou compartilhar vivências passarão a evitar temas sensíveis por medo.
Não se trata de negar a importância de medidas para proteger crianças no ambiente digital.
Mas é necessário reconhecer que adolescentes não são sujeitos passivos. A legislação brasileira reconhece o princípio da autonomia progressiva – a capacidade crescente de participação e decisão conforme a maturidade. Um sistema que suprime essa autonomia em nome de uma proteção abstrata, impedindo que adolescentes participem de debates públicos ou compartilhem vivências relevantes, não protege, infantiliza.
Os impactos vão além dos jovens. Pais podem enfrentar pressão para monitorar excessivamente os filhos, temendo denúncias. Educadores, receosos de abordar temas como depressão em aulas online, podem evitar debates essenciais. As plataformas teriam de gerenciar um volume massivo de notificações, muitas frívolas, além de litígios por remoções injustas. O resultado é um sistema que inibe o diálogo.
Proteger crianças exige medidas firmes, mas com limites claros. O PL poderia exigir a boa-fé de quem denuncia ou que as denúncias sejam fundamentadas, com penalidades para notificações abusivas. A remoção de conteúdos deveria, salvo em casos de risco iminente, como exploração sexual, depender de ordem judicial, conforme o Marco Civil. Um mecanismo de contraditório, permitindo que o autor do conteúdo se manifeste em até 48 horas, evitaria supressões injustas. E um limite material à legitimidade da denúncia, restringindo-a a pais, responsáveis legais ou autoridades em casos graves. Além disso, o envio automático às autoridades deveria ser restrito a violações graves, com critérios definidos em lei. Investir em educação digital para pais, jovens e educadores complementaria essas ações, promovendo um uso seguro da internet. Medidas desse tipo não inviabilizam a proteção, mas asseguram que ela não se transforme em instrumento de silenciamento.
Sem essas salvaguardas, o PL transforma plataformas em juízes de última instância e adolescentes em alvos fáceis de silenciamento. Jovens que usam a internet para buscar apoio ou compartilhar vivências evitarão temas sensíveis, temendo remoções. Um sistema que inibe discussões sobre bullying ou saúde mental não protege – sufoca. A segurança digital exige equilíbrio, não supressão de vozes legítimas.