Educação para cidadania contribui com tolerância política e o apreço pela pluralidade de opiniões
Por Guilherme Melo de Freitas | Gerente de pesquisa do Instituto Sivis
13/03/2024 05:20
Reproduzido de JOTA
Se realizarmos uma breve pesquisa que relacione os termos “educação” e “cidadania”, constataremos de imediato que há uma imensa quantidade de documentos pedagógicos, materiais e discursos que associam uma coisa à outra. De certo modo, tais iniciativas estão amparadas no artigo 205 da Constituição Federal que afirma que, entre outras coisas, a educação visa o “preparo para o exercício da cidadania”.
É verdade que o trecho constitucional citado possui uma capacidade notável para despertar “bons sentimentos e intenções inspiradoras”. Por outro lado, uma tendência negativa dessa profusão de materiais é que o tema se torne demasiado vago e assim nos leve a defender clichês quase banais, com poucas implicações práticas. Por isso, neste novo artigo da série “2024 é ano eleitoral”, abordaremos a questão da educação para cidadania, tema fundamental para concretizar essas “boas intenções”.
“Formar um bom cidadão” é uma bela frase, mas, como podemos considerá-la sem cair em meros jargões que pouco contribuem para enfrentarmos desafios reais? Antes de nos dedicarmos diretamente a essa questão, é importante comentarmos brevemente a existência de algumas ressalvas que aparecem com alguma frequência em debates sobre o tema.
A primeira tem a ver com o cenário altamente polarizado em que vivemos. Sob esse aspecto, falar em educação para cidadania seria entrar em polêmicas que necessariamente dividem as pessoas, de acordo com seus posicionamentos ideológicos: de um lado, estariam aqueles preocupados com indesejáveis doutrinações e militâncias de esquerda. De outro, os que não veem com bons olhos discursos que remetem à educação moral e cívica do período da ditadura. Considerando essas advertências, estamos diante de um beco sem saída ou haveria caminhos alternativos?
Um estilo de resposta a essa pergunta acaba gerando justamente outro conjunto de ressalvas em relação ao tema da educação para cidadania. Seriam aquelas propostas que, para fugir de tais polêmicas, caem em abordagens “aguadas”, que apelam para temáticas que até podem ser consideradas como razoáveis, mas que são demasiado amplas e genéricas como a “mãe-terra”, a “paz mundial”, etc.
Assim, novamente, tenderíamos à mesma armadilha de formarmos “bons cidadãos” ou mesmo “cidadãos bonzinhos” — o que na prática contribui pouco no sentido de oferecer algo verdadeiramente assertivo, que é o que procuraremos desenvolver aqui.
Para “driblarmos” essas ressalvas, um primeiro passo é definirmos de modo mais claro e preciso o que entendemos por “bom cidadão”. Não estamos falando de discussões conceituais infindáveis e sem conclusões, mas de um trabalho bastante concreto que o Instituto Sivis e o Itaú Social realizaram em parceria ao longo do ano de 2023.
No caso, um projeto que elaborou uma Matriz de Educação para Cidadania, um quadro de referências que pode servir como orientação para o ensino de competências para a formação em valores democráticos no Brasil. Guardadas as devidas proporções, analogamente, podemos conceber como uma espécie de “BNCC da Educação para Cidadania” em nosso país.
Amparada por ampla pesquisa de experiências teóricas e práticas nacionais e internacionais, a Matriz está organizada em 3 dimensões fundamentais:
1. valor humano: importância da dignidade humana, igualdade e valor intrínseco e inalienável de cada um;
2. vida em sociedade: importância da vida em comunidade, da cooperação e da solidariedade para a promoção do bem comum e;
3. vida política (importância dos valores democráticos para atingir o bem comum e o florescimento humano).
Por sua vez, cada uma dessas 3 dimensões é formada por duas competências, a saber:
1. valor humano: autoconhecimento e integridade;
2. vida em sociedade: consciência social e responsabilidade; e
3. vida política: cidadania e cultura democrática.
Por fim, as competências também possuem respectivas habilidades que, em breve, poderão ser consultadas mais detalhadamente em publicações do Instituto Sivis.
Como dissemos acima, oferecer uma referência que esclareça de modo preciso o que viria a ser um “bom cidadão” é decisivo, mas, é apenas o começo. Então, o que deve vir depois? Tendo em mãos um quadro referencial básico, os passos seguintes dizem respeito a iniciativas que operacionalizem tais conceitos na implementação de empreendimentos pedagógicos concretos.
Assim, é desejável que uma Matriz de Educação para Cidadania suscite o surgimento de práticas educativas, projetos de formação de professores, materiais didáticos, propostas de avaliação, e assim por diante. É por isso que o próprio Instituto Sivis desenvolveu o programa Virtuar que — por meio de materiais, formação e suporte pedagógicos — oferece justamente um conjunto de soluções que preparam e apoiam educadores, escolas e redes de ensino interessados em desenvolver uma efetiva e consistente educação para cidadania.
E, se evoluirmos na concretização de projetos robustos nesse sentido, o que o Brasil tem a ganhar? O International Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA), consórcio de pesquisa que coordena a aplicação do ICCS (International Civics and Citizenship Education Study), afirma que a educação para cidadania é um pilar fundamental da vida em sociedade, na medida em que oferece “os conhecimentos, a compreensão e as disposições consideradas necessárias para uma participação plena como cidadãos na sociedade”.
Na prática, isso significa que, ao investirmos em tais projetos, contribuímos para que os sujeitos adquiram conhecimentos mais profundos sobre si, seu papel efetivo na sociedade, seus direitos e deveres, o funcionamento das instituições, as políticas públicas, os debates em torno de temas relacionados ao bem comum, entre outros.
Assim, as pessoas tendem a se envolver de modo mais qualificado na vida política. Afinal, a compreensão mais profunda da realidade e dos acontecimentos é decisiva para lidar com maior consciência e maturidade em relação à desinformação e à manipulação, de modo que cada um se torna capaz de ser menos influenciado por discursos extremistas e informações falsas.
Ao promovermos esse ciclo virtuoso, cidadãos críticos e bem-informados opinam e tomam decisões mais bem fundamentadas, após analisar dados, avaliar fontes e entender questões complexas. Com isso, é maior a tendência de apoiarem líderes e políticas que reflitam melhor seus valores e visem o bem comum.
Por fim, também vale comentar que uma efetiva educação para cidadania contribui para a genuína tolerância política, o respeito e o apreço pela pluralidade de opiniões e a compreensão mútua, colaborando para que as pessoas estejam mais aptas a ouvir diferentes perspectivas e a encontrar soluções em conjunto. Em uma democracia saudável, tal capacidade para o diálogo e convivência são essenciais para resolver conflitos e construir consensos.
Em suma, a tão propagada expressão “formar bons cidadãos” não precisa se esgotar em clichês que não levam a lugar algum, estacionando-nos em boas intenções. Como já diria o velho ditado, “de boas intenções, o inferno está cheio!”.
Neste artigo, procuramos apresentar iniciativas concretas recentes, que nos permitem vislumbrar um futuro próximo bastante promissor. Esperamos que elas sejam apenas o início de uma crescente tendência que contribuirá para uma verdadeira reinvenção da educação para cidadania em nosso país.
Foto de destaque: Manifestantes pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff ocupam a Esplanada dos Ministérios / Crédito: Juca Varella/Agência Brasil