Ninguém vive na União ou no estado: as pessoas vivem no município

A vida política se dá primeiramente no nível local, onde os cidadãos têm contato mais direto com as questões públicas

 

Por Guilherme Melo de Freitas | Gerente de pesquisa do Instituto Sivis
27/03/2024 05:10
Reproduzido de JOTA

 

Nos últimos dias, foi lançada a mais recente edição do World Happiness Report: isso mesmo, o “Relatório Mundial da Felicidade”. Para quem não conhece, a notícia pode soar como piada, meme, um assunto engraçado, que no máximo tem o potencial de render papos divertidos num bom — com o perdão do trocadilho — “happy” hour. Afinal, “por que a Finlândia ficou pela sétima vez em 1º lugar?” Ou, “por que o Brasil está em 44°”? Enfim, consigo imaginar agradáveis “conversas de bar” nesse sentido. Mas, em princípio, não muito mais que isso.

Portanto, é relativamente surpreendente descobrir que o relatório é publicado periodicamente desde 2012, que seu diretor atual é da Universidade de Oxford e que o trabalho provém de uma iniciativa global ligada à própria ONU. É claro que podemos concluir simplesmente que existem “bizarrices” em todo lugar — inclusive em Oxford e na ONU. Mas, isso não desmente o fato de existir um Relatório Mundial da Felicidade. Mas e daí?

E daí que esse relatório é apenas mais um exemplo entre vários que evidenciam como o contexto atual está permeado por tentativas que visam mensurar “como anda o mundo”: desde o clássico Produto Interno Bruto (PIB), passando pelo também já muito conhecido Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), temos índices que medem desigualdade (Gini), desigualdade de gênero (IDG), sustentabilidade ambiental (ISA). Enfim, tem índice para muitos gostos!

Diante desse panorama, proponho a seguinte pergunta: com tantos índices disponíveis no mercado, precisamos de mais? Em ano de eleições municipais, neste artigo, pretendo argumentar que temos uma ótima oportunidade para considerarmos a profunda relevância do Índice de Democracia Local.

Desenvolvido pelo Instituto Sivis, o “IDL” é uma metodologia inovadora que mede a qualidade da democracia em nível local, baseando-se em cinco dimensões essenciais, com resultados calculados numa escala de 0 a 10: processo eleitoral; liberdades e direitos; funcionamento do governo local; participação política e cultura democrática.

Ao focar no âmbito do município, o índice preenche uma lacuna relevante entre os estudos da área que, em geral, abarcam somente níveis nacionais. Afinal, apesar de ser importante acompanhar tendências “macro”, há boas evidências de que crises recentes dos sistemas democráticos tem a ver com o afastamento do sistema político da vida cotidiana dos cidadãos, resultando por exemplo no fato de que muitas pessoas tendem a enxergar a política como algo exclusivo de “partidos”, “de Brasília”, “de pilantras”. E, “no final do dia”, duas consequências negativas desse cenário são: “Política não tem nada a ver com a minha vida!” ou ainda “Sim, eu vou me engajar: contra a política!”.

Definitivamente, tais posturas — o “indiferentismo” e a “antipolítica” — são prejudiciais ao bem comum. Precisamos, pelo contrário, de um bom exercício da política! E, nesse sentido, é essencial fomentar uma cultura democrática saudável, que dialogue de perto com a vida concreta das pessoas. Por isso, o âmbito municipal é chave, o que confirma a pertinência do IDL, que permite diagnosticar a visão do munícipio sobre as suas próprias capacidades, interesses, conhecimento e valores e como isso se relaciona com as instituições políticas e com o sistema democrático como um todo.

Em 2019, o índice foi aplicado de modo robusto na cidade de São Paulo. Só para dar uma ideia da dimensão grandiosa do estudo, foi realizado um survey com mais de 2400 pessoas e entrevistas com mais de 30 especialistas, nacionais e internacionais, sobre o tema — para citar apenas alguns, José Álvaro Moisés, Gabriela Lotta, Maria Hermínia Tavares, Marta Arretche, Ursula Peres, Humberto Dantas, Larry Diamond, Michael Coppedge, entre outros.

Na pesquisa, foi possível coletar e sistematizar dados que corroboram a importância crucial de valores como confiança e colaboração, evidenciando que fatores ligados à cultura democrática são essenciais para manter vibrante uma comunidade política, com pessoas que se sintam pertencentes e civicamente responsáveis pela sua localidade. Ou seja, não bastam instituições consolidadas: é necessário um “clima cultural” pujante, ou, mais especificamente, uma cultura democrática vigorosa.

Por isso, são muito bem-vindas iniciativas que desenvolvam e fortaleçam tal cultura. E, entre elas, vale mencionar a educação para cidadania, pois, é muito comum que as pessoas não entendam bem o funcionamento do sistema político, as responsabilidades das autoridades públicas, seus direitos e deveres, enfim, uma ampla gama de fatores que favorecem uma participação mais efetiva em relação às questões ligadas ao bem comum.

E, falando nisso, aqui está outro tema que a aplicação do IDL em São Paulo evidenciou de modo significativo: a participação política e a cultura democrática tendem a andar juntas, afinal, a primeira acaba sendo uma verdadeira “escola de democracia” porque faz com que os indivíduos exercitem a escuta, o debate, a reflexão, enfim, a vivência na prática de como o processo político funciona. Portanto, quanto mais criarmos mecanismos de incentivo à participação política, melhor para a democracia.

Enfim, como vimos, o Índice de Democracia Local contribui de modo decisivo para compreendermos a partir de evidências que a saúde das democracias depende muito de aspectos cotidianos e ligados à vida concreta dos sujeitos, corroborando assim a importância do clássico princípio da subsidiariedade — isto é, a vida política se dá primeiramente no nível local, onde as pessoas têm contato mais direto com as questões públicas. Afinal, retomando palavras de um conhecido político brasileiro: “Ninguém vive na União ou no estado: as pessoas vivem no município”.

 

Foto de destaque: Vista da cidade de São Paulo. Crédito: Pexels.

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