No Brasil, percebemos comportamentos frequentes que manifestam notável ausência de tolerância política
Por Guilherme Melo de Freitas | Gerente de pesquisa do Instituto Sivis
28/02/2024 05:00
Reproduzido de Jota
Almoço de domingo, família reunida na mesa… Aquele tio, que adora uma polêmica, faz questão de fazer um comentário a fim de jogar uma pimenta na refeição: “E essa última do STF, hein?!”. Certo silêncio e expressões faciais de reprovação. Alguns olham para a comida e fingem que não ouviram. Mas uma tia, que tem o perfil de não levar desaforo pra casa, faz questão de responder: “Se não fosse o STF, o país estaria nas mãos desses fascistas malucos, iguais a você!”.
O tio não deixa por menos: “Fascista, eu?! Você não enxerga que estamos caindo num totalitarismo sim, mas, dos seus amigos comunistas?!”. Enfurecida, a tia retruca: “Você, defensor da ditadura, não tem vergonha de falar de ‘totalitarismo’?! Sem condições de dialogar com alguém assim, tão incoerente e hipócrita!”… “Incoerente é você, que não enxerga o óbvio! É por causa desse ‘tipinho’ de pessoa que o país está indo pro buraco!”.
Os dois se levantam irritados e vão embora, sem ao menos terminar de comer. Entre aqueles que ficaram, paira um silêncio constrangedor. Finalmente, alguém inventa qualquer assunto mais ameno para mudar o foco e atenuar o clima pesado: “E aí, nesse paredão do BBB, para quem vocês estão torcendo?”.
A cena é fictícia, mas não é uma situação tão distante de vários episódios parecidos que provavelmente já presenciamos. Em tempos de polarização tão acirrada, pegando carona no tom apimentado do parágrafo anterior, a defesa da tolerância política não seria no fundo “conversa pra boi dormir”, “papo de gente ingênua”, mera “pauta fofa”?
Atualmente, tolerância soa como fraqueza de convicções, indiferença, resignação. Ou ainda, é muito comum que, ao pensarmos no tema, automaticamente nos ocorram “palavras do bem” como “respeitar”, “aceitar” ou até “suportar” a existência de pessoas que pensam diferentemente de nós. Partindo dessa perspectiva, muitas vezes a tolerância é entendida mais ou menos como “Eu até te tolero”, com um tom derrotado de alguém que atura, aguenta algo que, no fundo, é indesejado e, se fosse possível, o melhor seria extinguir tal situação.
Considerando esse tipo de concepção, a tolerância favoreceria uma visão de sociedade de sujeitos atomizados, individualistas e interessados apenas no próprio umbigo. Ou ainda, a tolerância seria uma atitude negativa bem sutil: uma estratégia de aparente cordialidade, de quem “finge que ouve e respeita”, mas no fundo não dá a mínima para quem pensa diferente.
Se esses forem os sentidos utilizados ao pensarmos em tolerância política, dificilmente nos sentiremos inclinados a apreciá-la e defendê-la. Portanto, em ano de eleições municipais no Brasil, enfrentemos de frente a seguinte pergunta: ainda é possível falarmos de modo relevante sobre o tema da tolerância? Ao nosso ver, certamente, a resposta é sim. No entanto, é preciso adotar um significado mais apropriado para a palavra, especialmente, no âmbito da política.
Em primeiro lugar, é importante não confundir tolerância com “tanto faz”, “relativismo”, ou ainda “proibição de discordar dos outros”. Na verdade, é justamente o contrário disso. A desejável tolerância política tem a ver com uma sociedade em que os cidadãos agem a favor da formação de um ambiente de debate e competição de posições e ideias diversas e até opostas às suas. E isso não porque as pessoas são “boazinhas”, “isentonas”, adeptas do “dois-ladismo”, “em cima do muro”, pelo contrário: a tolerância política “raiz” necessita de cidadãos com fibra moral e valores profundos.
Por isso, sujeitos verdadeiramente tolerantes estão convictos de que um cenário de genuína liberdade aliada a uma saudável diversidade de pensamento é o ideal para uma sociedade vibrante. Afinal, em um mundo onde as ideias são essenciais para o progresso e a inovação, é crucial que diferentes perspectivas sejam valorizadas e incentivadas, favorecendo assim o enriquecimento intelectual mútuo, a busca coletiva pelo conhecimento e a criatividade, abrindo portas para novas descobertas e avanços políticos, científicos, tecnológicos e culturais.
Além disso, uma comunidade política tolerante se torna um freio essencial contra eventuais medidas governamentais discricionárias e autoritárias: nesse sentido, a tolerância política é parte constitutiva de um conjunto de crenças e valores fundamentais ao dinamismo de uma verdadeira cultura democrática.
Ainda sobre essa convicção dos valores, a tolerância é um valor primordial numa sociedade que tem como princípio o reconhecimento da dignidade humana de cada um, independentemente de circunstâncias naturais — como deficiências mentais e físicas — e de razões políticas, ideológicas, sociais ou religiosas. É claro que toda sociedade precisará traçar limites à liberdade individual na medida de um possível conflito com o bem comum. Porém, a liberdade de agir em conformidade com o juízo que se entende correto deve sempre ser vista como um requisito indispensável para o respeito à dignidade do ser humano e, portanto, para uma sociedade verdadeiramente tolerante.
Assentadas de modo firme as razões que justificam a tolerância como um assunto pertinente e absolutamente necessário nos dias que correm, infelizmente, ao olharmos para o cotidiano da sociedade brasileira, perceberemos comportamentos que frequentemente manifestam uma notável ausência de tolerância política.
Entre outros exemplos, uma considerável aversão a discussões ponderadas e pautadas em evidências e propostas concretas; o gosto por palavras de ordem, estereótipos, tom presunçoso, ofensas pessoais e a utilização de expressões vagas como meros xingamentos; a formação de “turmas de pensamento único” que se voltam contra inimigos a serem “cancelados” e que se retroalimentam continuamente — muitas vezes, com fake news — nas redes sociais, impulsionadas por algoritmos enviesados das plataformas digitais.
Segundo a pesquisa “A primeira liberdade em debate: Perspectivas da população e do Congresso Nacional sobre a liberdade de expressão no Brasil”, realizada pelo Instituto Sivis, 33,6% das pessoas preferiram não se posicionar no espectro político. E, apesar dos 72,5% dos brasileiros concordarem – total ou parcialmente – que há liberdade de expressão no país, a mesma pesquisa aponta que um a cada três brasileiros já sentiu medo (sempre, frequentemente ou às vezes) de ser prejudicado ou perseguido pelas autoridades por criticar publicamente políticos, agentes públicos ou políticas públicas.
Na mesma linha, 22% dizem já ter deixado de postar algo sobre política nas redes sociais, frequentemente ou às vezes, por medo de como os outros poderiam reagir. Para citar outra fonte, segundo a World Values Survey Association, em relação à confiança interpessoal, enquanto, na Alemanha, a porcentagem de cidadãos que acreditam que a maioria das pessoas é confiável é de cerca de 45,95%, no Brasil, é de 6,65%. No que se refere ao interesse do brasileiro por política, enquanto os dados mais recentes indicam que no Brasil apenas cerca de 40% dos cidadãos afirmam possuir bastante ou muito interesse por política, na Alemanha, esta proporção chega a quase 80%.
Ou seja, é razoável cogitarmos que a situação deficitária de tolerância política e confiança no próximo tem a ver com a baixa participação política. Mas, para além do diagnóstico sobre a intolerância em nossa sociedade, é importante aproveitarmos o ano eleitoral para pensarmos em caminhos para a construção de um país com mais tolerância política.
Nesse sentido, atores políticos, jornalistas, formadores de opinião, meios de comunicação, influenciadores, instituições de ensino, organizações da sociedade civil, entre outros, podem contribuir decisivamente para a promoção da tolerância política, como é o caso de iniciativas como o “Brasil Fala”, citado no último artigo da série “2024 é ano eleitoral”, que será a versão brasileira do My Country Talks, plataforma que, por meio da promoção de diálogos entre duas pessoas, tem como missão construir pontes entre opiniões e visões de mundo distintas.
Além da promoção de espaços democráticos e plurais de debate, é importante vislumbrarmos possibilidades de impulsionar iniciativas que mobilizem os atores sociais locais para a construção de propostas concretas em conjunto, em torno de questões ligadas ao bem comum, resultando por exemplo na formação de coalizões municipais consistentes, com forte participação dos cidadãos.
Tais empreendimentos podem ser grandes oportunidades para incentivar a diversidade de posicionamentos, o exercício genuíno da escuta atenta ao outro, a pacífica convivência com quem pensa diferente, a participação, o interesse e o engajamento em relação às questões políticas. Ações nesse sentido serão muito bem-vindas para que as eleições deste ano sejam uma ocasião que contribua efetivamente para o crescimento da tolerância política na democracia brasileira.
Foto de destaque: Freepik.