‘Política não se discute’: será?

É especialmente oportuno aproveitarmos o ano de eleição municipal para refletirmos sobre a qualidade do diálogo no Brasil

 

Por Guilherme Freitas de Melo | Gerente de pesquisa do Instituto Sivis
14/02/2024 05:00
Reproduzido de Jota

 

Em um mundo marcado pelo aumento da polarização tóxica, a política se fragiliza e é até desacreditada. Com isso, sobram comportamentos desrespeitosos, ataques pessoais, divisões acirradas e inclusive atos de violência que, na prática, impossibilitam a concretização de projetos coletivos em prol do bem comum.

Considerando que as eleições municipais são um momento crucial da democracia brasileira, é especialmente oportuno aproveitarmos este ano para refletirmos sobre a qualidade do diálogo em nosso país. É por isso que o segundo artigo da série “2024 é ano eleitoral” discute a relevância do diálogo político a partir de duas perspectivas: na esfera interpessoal e na relação dos cidadãos com as lideranças municipais. Definitivamente, acreditamos que o fortalecimento dessa temática nesses contextos favorece de modo decisivo a promoção de uma cultura democrática dinâmica e consistente, algo profundamente necessário no Brasil atual.

Em entrevista recente (19/01/24) ao jornal O Estado de S. Paulo, o extraordinário sambista brasileiro Zeca Pagodinho, curiosamente, comentou a polarização política nas relações pessoais: “Tenho amigos que acabaram a amizade por causa disso. Coisa babaca, né? Eu não falo de política e na minha casa não se pode falar (de política). Mando logo um ‘vamos parar esse assunto!’. O assunto aqui é beber, cantar samba, contar história”. Apesar de admirarmos muito o querido Zeca, pedimos licença para discordar taxativamente de sua opinião que, infelizmente, é muito comum entre os brasileiros.

A esfera interpessoal é onde os valores, as perspectivas e as ideias se formam, se chocam, se fortalecem e/ou se transformam. Por isso, se crescermos na capacidade de conversar sobre política de modo respeitoso com aqueles mais próximos — dentro de casa, no nosso trabalho diário, com nossos vizinhos etc. —, visando genuinamente a compreensão mútua e a empatia, contribuiremos para a formação de pessoas – em primeiro lugar, nós mesmos! – aptas a conviver com o diferente, a construir pontes, a aprofundar e/ou questionar as próprias convicções.

Por isso, se os cidadãos de uma comunidade política entenderem a importância das virtudes cívicas que favorecem o diálogo, maiores serão as chances de cooperarem entre si, fortalecendo assim os laços sociais e aumentando a probabilidade de empreenderem iniciativas de associação civil. Afinal, indivíduos que conversam habitualmente sobre as questões relativas ao bem comum serão mais propensos a se juntar a fim de enfrentar os desafios compartilhados coletivamente.

Nesse sentido, uma sociedade composta por sujeitos que dialogam de modo saudável na esfera interpessoal incentiva a cooperação social, o que por sua vez alimenta e fortalece a cultura democrática. Assim sendo, uma “comunidade política dialógica” é um ambiente propício ao surgimento de mais organizações civis, associações comunitárias, grupos de interesse, entre outros, que se tornarão meios importantes de participação política dos cidadãos, não apenas na mobilização entre si, mas também na articulação direta com as autoridades públicas.

Considerando que um dos pilares fundamentais da democracia é a participação cidadã no processo de tomada de decisões, no âmbito das cidades, o diálogo efetivo entre os munícipes e as lideranças locais é um fator essencial para uma governança transparente e responsável. Por isso, na medida em que nos aproximamos das eleições municipais de 2024, é imprescindível pensarmos em estratégias que possam efetivar a participação política dos cidadãos de modo mais amplo e significativo.

Uma primeira frente desejável é a ampliação de acesso à informação e da transparência governamental, em que os governos se empenham em disponibilizar dados mais claros, acessíveis e atualizados sobre as políticas e serviços da cidade, permitindo assim que as pessoas estejam mais bem informadas para participar do debate público.

Outra frente possível que poderia trazer bons frutos é a criação e/ou o aperfeiçoamento de canais concretos de participação, como conselhos municipais, audiências públicas, fóruns, etc., como forma de fortalecer a legitimidade e a eficácia das políticas públicas locais. Além disso, a utilização de tecnologias digitais, como plataformas online de participação cidadã e cogestão, pode favorecer que mais pessoas tenham voz nas decisões municipais, independentemente de sua localização geográfica ou horário disponível.

Aqui, é importante uma ressalva. Apesar dos potenciais benefícios advindos com as tecnologias, seria ingênuo ignorarmos a existência de interesses econômicos e ideológicos no mundo digital, capazes de enviesar negativamente o debate a partir de perspectivas restritas e, muitas vezes, radicalizadas. Infelizmente, o funcionamento de muitas plataformas pode favorecer apenas o encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando assim o diálogo entre aqueles que possuem visões diferentes. Estes circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios.

Considerando essa realidade, também na linha de acesso à informação, são bem-vindas iniciativas que promovem a educação para a cidadania no âmbito das escolas e das comunidades de bairro, incentivando o debate sobre os temas relevantes das respectivas localidades e sobre como isso está vinculado às eleições e aos planos de governo dos candidatos a prefeito e vereadores, assim como contribuam na formação dos cidadãos em relação à consulta e compartilhamento de notícias e informações confiáveis.

Citando novamente nosso estimado Zeca Pagodinho, na música “Comunidade carente”, ele expressa com bastante vivacidade sua indignação e desconfiança com os políticos:

Eu moro numa comunidade carente
Lá ninguém liga pra gente
Nós vivemos muito mal
Mas esse ano nós estamos reunidos
Se algum candidato atrevido
For fazer promessas vai levar um pau.

Nesta música, Zeca expressa um sentimento bastante presente entre os brasileiros, muitas vezes legítimo: afinal, sobram exemplos negativos advindos do mundo político. Porém, certamente, não iremos melhorar a situação ameaçando os candidatos que, se não se comportarem bem, irão “levar um pau”. As feridas deixadas pelos maus políticos não serão remediadas pela negação da política: ao contrário, uma das importantes vias para melhorar essa situação é o autêntico exercício do diálogo.

Nesse sentido, é encorajador conhecermos ações como o My Country Talks, iniciativa que, através do diálogo entre duas pessoas, tem como missão construir pontes entre opiniões e visões de mundo distintas. Por meio de uma plataforma que conecta e promove conversas entre pessoas que pensam diferente, a iniciativa já envolveu mais 290 mil participantes em todo o mundo.

Em 2024, em parceria com o Instituto Sivis (Brasil) e um time de pesquisadores da Stanford University (Estados Unidos), o My Country Talks irá realizar o evento O Brasil Fala – Conversa que transforma, que pretende conectar brasileiros para conversas online com pessoas que possuam visões políticas bastante diferentes. Basicamente, funciona da seguinte maneira: pessoas interessadas respondem um questionário sobre suas preferências políticas.

Depois, a plataforma realiza um pareamento (“matching”) entre pessoas com opiniões diferentes. Então, esses participantes se encontram para uma conversa em uma plataforma segura. Para os que enxergam a iniciática com descrença, apenas alguns números: 90% das pessoas afirmaram que participariam novamente de uma conversa e 60 % disseram que continuariam em contato com a pessoa que conversaram.

Ou seja, criarmos ocasiões para promover um genuíno diálogo entre duas pessoas que pensam diferente: está aí um potencial antídoto para atenuar os prejuízos advindos da polarização exacerbada.

Enfim, um contexto societário em que o diálogo aberto, tolerante e respeitoso adquira relevância central — tanto na esfera interpessoal quanto na esfera pública — permite que diversos indivíduos e grupos tenham a oportunidade de expressar suas diferentes visões e demandas, possibilitando a construção de debates políticos mais plurais, abrangentes e equitativos. Considerando que em geral os desafios públicos são complexos e multifacetados, a ampliação de perspectivas por meio do diálogo facilita a identificação e a compreensão dos problemas. Assim, os cidadãos e as autoridades públicas poderão atuar de modo mais colaborativo na busca de soluções verdadeiramente efetivas e sustentáveis.

 

Foto de destaque: Unsplash.

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